7 de novembro de 2012

PROCESSO DE VIDA E CRIAÇÃO

Aí vão mais anotações para a escritura da dissertação. Exercício proposto pela minha orientadora para perceber quais são as questões de pesquisa que pulsam da minha trajetória. Enjoy, or not...



Em minha trajetória experienciei o Balé Clássico dos quatro aos catorze anos de idade e depois algumas tentativas esporádicas de retomada da prática. Em 2007 ingressei no curso de Teatro onde tive experiências técnicas e estéticas com a linguagem teatral. Durante este processo, participei durantede dois anos (2008-2009) de trabalho do grupo Projeto Disfunctorium com onze artistas que pesquisavam sobre Performance Arte a partir de suas diversas experiências e nos colocávamos juntos nos processos de criação que geraram várias “peças” apresentadas em grupo.
Balé clássico, teatro, performance. Já no decorrer deste último momento pulsavam inquietações sobre minha dança, a que ali se formava. Minha objetividade e pragmatismo exigiam de mim muitas vezes um esforço em diferenciar as práticas que eu realizava, identificava a dança como sequência de movimentos pré-estabelecidos ou não e a performance como a realização de uma ação com um fim, um objetivo. Mal sabia naquele momento que estava tratando da mesma coisa.
Ancorava, ainda que primariamente, esta percepção de ação numa performance criada em 2008 e intitulada Gula, na qual aparecia com o corpo completamente coberto de tinta branca e ao me tocar ia deslocando a tinta e revelando minha cor negra. Eis o objetivo e a ação. O problema dessa primeira tese era a percepção rasa de dança que ainda se espelhava na experiência do balé clássico, que ainda praticava na época, de sequencia de movimentos. Silenciosamente me perguntava: Mas que tipo de movimentos? O que caracteriza uma sequência?
Desde este trabalho vieram outros tantos semelhantes em termos de metodologia, como “Marionetes e Ventrículos” (2009) realizado com André Bezerra no qual, ao tratar de memórias de infância, sou afetada e afeto a movimentação do performer citado através de uma ligação tecida por fios elásticos. Ou mesmo outro trabalho de grande importância na construção do pensamento em dança que cultivo hoje, “O Que Egon Schiele Estaria Dizendo”.

O processo que deu origem a este último trabalho se deu no decorrer de 2009 e era parte de um projeto de espetáculo encabeçado por André Bezerra. Neste processo, André nos dava semanalmente, temas como impulsos de criação, nos quais em uma só frase se encontravam eixos temáticos de diversas áreas do conhecimento.como medicina, filosofia, artes plásticas, sexologia, etc. com uma forte base nas pesquisas que iniciava em dança butoh.
Este processo, tendo durado cerca de cinco meses, deu origem ao que eu chamava na época de “dança-performance” que tinha como base cinco obras de Egon Schiele, tais obras foram organizadas em uma ordem criando um roteiro de imagens. Neste trabalho procurei traduzir as imagens do pintor em meu próprio corpo investigando como se daria a passagem de uma imagem para outra, este espaço entre imagens no qual ia se construindo a dança performance com duração de cerca de 15 minutos. Para a pesquisa de movimento me baseei em distúrbios neuromotores como epilepsia, por exemplo, para traduzir a perspectiva de colapso do corpo tratada na dança butoh e também pelo pintor austríaco. O texto teórico produzido nesta época, compartilhado apenas entre os amigos de processo criativo e esquecido por anos até que pude revisitá-lo e me dedicar a terminá-lo na escritura do Projeto de Mestrado.
Uma experiência bastante importante também aconteceu em 2008 foi a performance “Estudo Sobre Natureza Morta” apresentada junto a outras performances do grupo Projeto Disfunctorium na V Reunião da ABRACE como demonstração prática do trabalho “Disfunctorium e o Museu do Perecível: Estilhaços de Corpos na Cena Potiguar” apresentado pelo Professor Doutor Alex Beigui. Nesta performance, planejei ficar durante 24h repetindo uma mesma movimentação na perspectiva de estudo de movimento, porém o evento apenas permitiram a realização desta performance por cerca de 11h.
Experiência riquíssima por ser minha primeira performance de longa duração e também porque com ela pude compreender de que se trata a dança em sua perspectiva mais significante, tal entendimento se deu pela sensação que tive após parar completamente depois de 11h de movimento contínuo. Senti que o movimento continuava internamente quase que querendo se fazer externo, um impulso que se dava pela necessidade do movimento impresso no meu corpo depois de horas de processo de investigação. 
Porém todas estas investigações e as questões que geravam apenas começaram a tomar forma enquanto produção de pensamento em dança no ano de 2011 com a encenação “Outro Manifesto: Um Artista da Fome” parte prática do meu Trabalho de Conclusão de Curso e que teve como impulso a provocação da minha orientadora de que eu mergulhasse num processo de criação solo.
De fato estava num momento de repensar a minha prática individual diante de tantos trabalhos realizados coletiva e colaborativamente mesmo que, nos intervalos entre eles eu tenha realizado algumas performances solo. Sempre me perguntava como algo tão sensível e idiossincrático como a performance arte pode se dar em processos grupais, que agenciam tantas inquietações, tantas fomes. Sem correr o risco de me colocar numa situação de defesa de uma metodologia ou outra de trabalho, compreendo que minhas inquietações estéticas/poéticas/políticas encontraram espaço mais propício para se desenvolverem no trabalho solo.
Enquanto concluinte de um curso de Licenciatura em Teatro, outra preocupação que pulsava no início deste processo era pensar como se daria um processo de criação solo em Teatro, linguagem com a qual eu tecia uma relação de inquietudes por não ter encontrado nela ferramentas que alimentassem minhas questões estéticas e de criação.
Nesse sentido cheguei ao texto Um Artista da Fome de Franz Kafka no qual o escritor trata da figura de um jejuador que se coloca como atração em diversas cidades fechado em uma jaula aonde coloca a prova sua capacidade de passar quarentenas sem ingerir nenhum tipo de alimento. Na figura deste artista encontrei vazão para as questões que me cercavam no processo de finalização do curso.
Embora tivesse um ponto de partida claro, a cada vez que me colocava na sala de ensaio me sentia presa à necessidade de articular uma encenação na linguagem teatral, pois os caminhos que experimentava me traziam idéias de ações de performance, de partituras coreográficas, mas não de cenas teatrais. Da mesma forma não me interessava montar uma peça a partir do texto de Kafka e não conseguia articular o material que conseguia em sala de ensaio para a direção de uma encenação teatral.
Nesse sentido, optei por utilizar as metáforas que o texto propõe entre o ficcional Artista da Fome e minha real condição de artista. O contato com o texto kafkiano trouxe uma maior clareza no tema gerador do processo, que transpõe as barreiras do pertencimento a um espaço para tratar do pertencimento à um grupo social de artista, latino-americana, nordestina, mulher, negra; e a reflexão sobre esta condição que deixa de ser pessoal para ser coletiva, política.
Passei a investigar a questão poética que move o texto kafkiano, a fome. Tal investigação se deu de inúmeras maneiras, no exercício da escrita, na criação de partituras de movimento, na coleção de memórias de infância. Pensando a trajetória do artista da fome, de Franz Kafka e a minha própria dei início a construção do “Manifesto da Fome” que investiga e instiga em que territórios se localizam essa fome, como ela se manifesta na contemporaneidade.
A minha trajetória artista foi também um fator pulsante nessa investigação, procurei retomar as experiências artísticas que vivi desde o primeiro dia em que pisei numa sala de balé aos quatro anos de idade até àquele momento presente através de fotos, vídeos e memórias. Tentava também retomar o que eu entendia como arte em cada um desses momentos, em cada uma dessas pausas, o que significava ser artista, um hobby, uma falta, uma necessidade.
Junto ao meu assistente de direção e responsável pelo espaço cênico e iluminação André Bezerra, cheguei a uma cartografia do espaço, um mapa pelo qual ao me deslocar, deslocaria também o leitor pela minha trajetória artística. Cada espaço caracteriza um estado energético, uma qualidade de movimentação e traz consigo ações características a ele. Foi preciso que eu me permitisse conversar com o espaço e com seus elementos, ao invés que criar as movimentações para compor a partir delas o espaço.
Dentro dessa perspectiva o trabalho era realizado na sala de ensaio consistia nos estudos sobre travessias entre os espaços e a organização das ações a partir dos objetos e espaços que acena apresenta. É válido ressaltar que trabalho a partir de esboços de cenas, de espaços e de movimentações e que estes sem dúvida estarão eternamente em processo de construção e modificação.
Ao partir do espaço para a criação das cenas, acabei por ter como encenação um roteiro de ações que se distribuem entre os espaços e na ligação entre eles, um roteiro de ações que podem ser aprofundadas separadamente ou mesmo reorganizadas de maneiras diferentes a cada apresentação.
Cada uma das cenas criadas além de ter as mais diversas possibilidades de criação trazem também, implicitamente, procedimentos do teatro, da dança, da performance separadamente ou não. O mais importante aprendizado desse processo consiste na constatação de que, mesmo sem intenções específicas, nós enquanto seres criativos encontramos nossos espaços de criação. Não se faz mais tão importante que nos concentremos nesta ou naquela linguagem artística, pois nosso impulso criador e o objeto/cena que estamos lapidando encontra e demanda seus próprios procedimentos, cabe a nós, apenas escolhermos os que nos interessam ou não esteticamente.
Depois das primeiras apresentações deste formato da encenação, me coloco na perspectiva de me aprofundar em cada espaço/cena proposto nesse processo. O manifesto, em construção até os dias de hoje tomou força própria na medida em que gerou a performance “Corpo Manifesta” na qual me coloco em um púlpito, lendo o manifesto e acoplando identidades ao meu corpo através de objetos como coroas de orixás ou mesmo cocares.

O Manifesto da Fome lido nesta performance caracteriza um aprofundamento nas ideias colocadas no primeiro manifesto escrito. A performance “Corpo Manifesta” ainda não foi apresentada em território natalense e, ao passar por espaços como Recife e Curitiba teve o manifesto reconstruído para tratar também de questões inerentes a estes espaços como políticas culturais de eventos ou mesmo o forte movimento skin head.
A encenação “Outro Manifesto: Um Artista da Fome”, é sem dúvida um dos trabalhos mais relevantes da minha carreira por me provocar em seu processo com questões estéticas, acadêmicas, e mesmo pessoais-políticas que instigam minhas investigações artísticas até os dias de hoje. Nesta encenação me permiti investigar todos os apontamentos que fui percebendo durante minhas práticas anteriores, o roteiro de ações/imagens, o espaço do entre, minhas experiências pessoais em cena e um pensamento em dança que se caracteriza pelo impulso interno, subjetivo que gera movimento. Depois de passado mais de um ano da primeira apresentação desta encenação, percebo que a encenação aconteceu, mas ainda continuo em processo.
Hoje, retomando estas experiências fica claro que a dança sempre esteve presente em minha vida e impulsiona até hoje meus processos de criação e investigação cênica assim como a escrita acadêmica que começo agora a amadurecer. É importante perceber também que nesse processo de vida e criação buscando sempre o espaço do entre-linguagens, o esforço em pensar a Dançatividade das manifestações artísticas é também um esforço político que vai de encontro ao preciosismo das linguagens.
No contexto natalense das Artes Visuais e também da Dança, onde tenho mais proximidade e experiência, parece ser defendida por “pessoas influentes” uma pureza da linguagem, excluindo tudo que não se parece com o que é produzido por eles. Tal postura é um total retrocesso quando estamos num contexto contemporâneo de contaminação entre as linguagens que pode proporcionar, inclusive, uma maior riqueza nas manifestações artísticas.
Como afirmo no Manifesto da Fome: “Não tenho uma raça ou etnia definida, tenho a compreensão de que diferenças existem, e que as fomes não são as mesmas. Enquanto artista me coloco na zona de fronteira, onde posso me deslocar para uma linguagem ou para outra com total liberdade, me interessam as possibilidades de miscigenação das diferenças, de extinção de uma pureza das linguagens, do humano.”
Faz-se necessário compreender que o movimento surge de um impulso, uma sensação seja o simples movimento de coçar uma parte do corpo ou a realização de trinta e dois fouettés.  A dança é de todos que queiram ou que precisem dançar e é possível encontrar a dança nos movimentos de um bebê que começa a compreender os impulsos necessários para mudar de posição, como esboço no experimento de vídeo “Dança para Aprender a Ser de Novo”.
Proposto para a avaliação da Disciplina de Tv e Vídeo, cursada no decorrer da graduação em Teatro, engatinhando na edição e captação de imagens coloco bailarinos em seu momento de ensaio que, ao atenderem às batidas na porta da sala, vão sendo substituídos por uma criança encontrando as coordenações necessárias para desenhar ou mesmo um bebê brincando no chão da sala. Tal inversão é proposta como uma maneira descontraída de pensar essa dança “de toda a gente”, virtuosa, estranha, misturada, popular e acadêmica, mas antes de tudo isso, Dança.



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