Aí vão mais anotações para a escritura da dissertação. Exercício proposto pela minha orientadora para perceber quais são as questões de pesquisa que pulsam da minha trajetória. Enjoy, or not...
Em minha trajetória
experienciei o Balé Clássico dos quatro aos catorze anos de idade e depois
algumas tentativas esporádicas de retomada da prática. Em 2007 ingressei no
curso de Teatro onde tive experiências técnicas e estéticas com a linguagem
teatral. Durante este processo, participei durantede dois anos (2008-2009) de
trabalho do grupo Projeto Disfunctorium com onze artistas que pesquisavam sobre
Performance Arte a partir de suas diversas experiências e nos colocávamos
juntos nos processos de criação que geraram várias “peças” apresentadas em
grupo.
Balé clássico, teatro,
performance. Já no decorrer deste último momento pulsavam inquietações sobre
minha dança, a que ali se formava. Minha objetividade e pragmatismo exigiam de
mim muitas vezes um esforço em diferenciar as práticas que eu realizava,
identificava a dança como sequência de movimentos pré-estabelecidos ou não e a
performance como a realização de uma ação com um fim, um objetivo. Mal sabia
naquele momento que estava tratando da mesma coisa.
Ancorava, ainda
que primariamente, esta percepção de ação numa performance criada em 2008 e
intitulada Gula, na qual aparecia com o corpo completamente coberto de tinta
branca e ao me tocar ia deslocando a tinta e revelando minha cor negra. Eis o
objetivo e a ação. O problema dessa primeira tese era a percepção rasa de dança
que ainda se espelhava na experiência do balé clássico, que ainda praticava na
época, de sequencia de movimentos. Silenciosamente me perguntava: Mas que tipo
de movimentos? O que caracteriza uma sequência?
Desde este trabalho
vieram outros tantos semelhantes em termos de metodologia, como “Marionetes e
Ventrículos” (2009) realizado com André Bezerra no qual, ao tratar de memórias
de infância, sou afetada e afeto a movimentação do performer citado através de
uma ligação tecida por fios elásticos. Ou mesmo outro trabalho de grande
importância na construção do pensamento em dança que cultivo hoje, “O Que Egon
Schiele Estaria Dizendo”.
O processo que deu
origem a este último trabalho se deu no decorrer de 2009 e era parte de um
projeto de espetáculo encabeçado por André Bezerra. Neste processo, André nos
dava semanalmente, temas como impulsos de criação, nos quais em uma só frase se
encontravam eixos temáticos de diversas áreas do conhecimento.como medicina,
filosofia, artes plásticas, sexologia, etc. com uma forte base nas pesquisas
que iniciava em dança butoh.
Este processo, tendo
durado cerca de cinco meses, deu origem ao que eu chamava na época de “dança-performance”
que tinha como base cinco obras de Egon Schiele, tais obras foram organizadas
em uma ordem criando um roteiro de imagens. Neste trabalho procurei traduzir as
imagens do pintor em meu próprio corpo investigando como se daria a passagem de
uma imagem para outra, este espaço entre imagens no qual ia se construindo a
dança performance com duração de cerca de 15 minutos. Para a pesquisa de movimento
me baseei em distúrbios neuromotores como epilepsia, por exemplo, para traduzir
a perspectiva de colapso do corpo tratada na dança butoh e também pelo pintor austríaco.
O texto teórico produzido nesta época, compartilhado apenas entre os amigos de
processo criativo e esquecido por anos até que pude revisitá-lo e me dedicar a
terminá-lo na escritura do Projeto de Mestrado.
Uma
experiência bastante importante também aconteceu em 2008 foi a performance “Estudo
Sobre Natureza Morta” apresentada junto a outras performances do grupo Projeto
Disfunctorium na V Reunião da ABRACE como demonstração prática do trabalho “Disfunctorium
e o Museu do Perecível: Estilhaços de Corpos na Cena Potiguar” apresentado pelo
Professor Doutor Alex Beigui. Nesta performance,
planejei ficar durante 24h repetindo uma mesma movimentação na perspectiva de
estudo de movimento, porém o evento apenas permitiram a realização desta
performance por cerca de 11h.
Experiência riquíssima por ser
minha primeira performance de longa duração e também porque com ela pude
compreender de que se trata a dança em sua perspectiva mais significante, tal
entendimento se deu pela sensação que tive após parar completamente depois de
11h de movimento contínuo. Senti que o movimento continuava internamente quase
que querendo se fazer externo, um impulso que se dava pela necessidade do
movimento impresso no meu corpo depois de horas de processo de
investigação.
Porém todas estas
investigações e as questões que geravam apenas começaram a tomar forma enquanto
produção de pensamento em dança no ano de 2011 com a encenação “Outro
Manifesto: Um Artista da Fome” parte prática do meu Trabalho de Conclusão de
Curso e que teve como impulso a provocação da minha orientadora de que eu
mergulhasse num processo de criação solo.
De fato estava num
momento de repensar a minha prática individual diante de tantos trabalhos realizados
coletiva e colaborativamente mesmo que, nos intervalos entre eles eu tenha
realizado algumas performances solo. Sempre me perguntava como algo tão
sensível e idiossincrático como a performance arte pode se dar em processos
grupais, que agenciam tantas inquietações, tantas fomes. Sem correr o risco de
me colocar numa situação de defesa de uma metodologia ou outra de trabalho,
compreendo que minhas inquietações estéticas/poéticas/políticas encontraram
espaço mais propício para se desenvolverem no trabalho solo.
Enquanto concluinte de
um curso de Licenciatura em Teatro, outra preocupação que pulsava no início
deste processo era pensar como se daria um processo de criação solo em Teatro,
linguagem com a qual eu tecia uma relação de inquietudes por não ter encontrado
nela ferramentas que alimentassem minhas questões estéticas e de criação.
Nesse sentido cheguei
ao texto Um Artista da Fome de Franz Kafka no qual o escritor trata da figura
de um jejuador que se coloca como atração em diversas cidades fechado em uma
jaula aonde coloca a prova sua capacidade de passar quarentenas sem ingerir
nenhum tipo de alimento. Na figura deste artista encontrei vazão para as
questões que me cercavam no processo de finalização do curso.
Embora tivesse um ponto
de partida claro, a cada vez que me colocava na sala de ensaio me sentia presa
à necessidade de articular uma encenação na linguagem teatral, pois os caminhos
que experimentava me traziam idéias de ações de performance, de partituras
coreográficas, mas não de cenas teatrais. Da mesma forma não me interessava
montar uma peça a partir do texto de Kafka e não conseguia articular o material
que conseguia em sala de ensaio para a direção de uma encenação teatral.
Nesse sentido, optei por utilizar
as metáforas que o texto propõe entre o ficcional Artista da Fome e minha real
condição de artista. O contato com o texto kafkiano trouxe uma maior clareza no
tema gerador do processo, que transpõe as barreiras do pertencimento a um
espaço para tratar do pertencimento à um grupo social de artista,
latino-americana, nordestina, mulher, negra; e a reflexão sobre esta condição
que deixa de ser pessoal para ser coletiva, política.
Passei a investigar a
questão poética que move o texto kafkiano, a fome. Tal investigação se deu de
inúmeras maneiras, no exercício da escrita, na criação de partituras de
movimento, na coleção de memórias de infância. Pensando a trajetória do artista
da fome, de Franz Kafka e a minha própria dei início a construção do “Manifesto
da Fome” que investiga e instiga em que territórios se localizam essa fome,
como ela se manifesta na contemporaneidade.
A minha trajetória
artista foi também um fator pulsante nessa investigação, procurei retomar as
experiências artísticas que vivi desde o primeiro dia em que pisei numa sala de
balé aos quatro anos de idade até àquele momento presente através de fotos,
vídeos e memórias. Tentava também retomar o que eu entendia como arte em cada
um desses momentos, em cada uma dessas pausas, o que significava ser artista,
um hobby, uma falta, uma necessidade.
Junto ao meu assistente
de direção e responsável pelo espaço cênico e iluminação André Bezerra, cheguei
a uma cartografia do espaço, um mapa pelo qual ao me deslocar, deslocaria
também o leitor pela minha trajetória artística. Cada
espaço caracteriza um estado energético, uma qualidade de movimentação e traz
consigo ações características a ele. Foi preciso que eu me permitisse conversar
com o espaço e com seus elementos, ao invés que criar as movimentações para
compor a partir delas o espaço.
Dentro
dessa perspectiva o trabalho era realizado na sala de ensaio consistia nos
estudos sobre travessias entre os
espaços e a organização das ações a partir dos objetos e espaços que acena
apresenta. É válido ressaltar que trabalho a partir de esboços de cenas, de
espaços e de movimentações e que estes sem dúvida estarão eternamente em
processo de construção e modificação.
Ao partir
do espaço para a criação das cenas, acabei por ter como encenação um roteiro de
ações que se distribuem entre os espaços e na ligação entre eles, um roteiro de
ações que podem ser aprofundadas separadamente ou mesmo reorganizadas de
maneiras diferentes a cada apresentação.
Cada uma das cenas
criadas além de ter as mais diversas possibilidades de criação trazem também,
implicitamente, procedimentos do teatro, da dança, da performance separadamente
ou não. O mais importante aprendizado desse processo consiste na constatação de
que, mesmo sem intenções específicas, nós enquanto seres criativos encontramos
nossos espaços de criação. Não se faz mais tão importante que nos concentremos
nesta ou naquela linguagem artística, pois nosso impulso criador e o objeto/cena
que estamos lapidando encontra e demanda seus próprios procedimentos, cabe a
nós, apenas escolhermos os que nos interessam ou não esteticamente.
Depois das primeiras
apresentações deste formato da encenação, me coloco na perspectiva de me
aprofundar em cada espaço/cena proposto nesse processo. O manifesto, em
construção até os dias de hoje tomou força própria na medida em que gerou a
performance “Corpo Manifesta” na qual me coloco em um púlpito, lendo o
manifesto e acoplando identidades ao
meu corpo através de objetos como coroas de orixás
ou mesmo cocares.
O Manifesto da Fome
lido nesta performance caracteriza um aprofundamento nas ideias colocadas no
primeiro manifesto escrito. A performance “Corpo Manifesta” ainda não foi
apresentada em território natalense e, ao passar por espaços como Recife e
Curitiba teve o manifesto reconstruído para tratar também de questões inerentes
a estes espaços como políticas culturais de eventos ou mesmo o forte movimento skin head.
A encenação “Outro
Manifesto: Um Artista da Fome”, é sem dúvida um dos trabalhos mais relevantes
da minha carreira por me provocar em seu processo com questões estéticas,
acadêmicas, e mesmo pessoais-políticas que instigam minhas investigações
artísticas até os dias de hoje. Nesta encenação me permiti investigar todos os
apontamentos que fui percebendo durante minhas práticas anteriores, o roteiro
de ações/imagens, o espaço do entre, minhas experiências pessoais em cena e um pensamento
em dança que se caracteriza pelo impulso interno, subjetivo que gera movimento.
Depois de passado mais de um ano da primeira apresentação desta encenação,
percebo que a encenação aconteceu, mas ainda continuo em processo.
Hoje, retomando estas
experiências fica claro que a dança sempre esteve presente em minha vida e
impulsiona até hoje meus processos de criação e investigação cênica assim como
a escrita acadêmica que começo agora a amadurecer. É importante perceber também
que nesse processo de vida e criação buscando sempre o espaço do
entre-linguagens, o esforço em pensar a Dançatividade
das manifestações artísticas é também um esforço político que vai de encontro
ao preciosismo das linguagens.
No contexto natalense
das Artes Visuais e também da Dança, onde tenho mais proximidade e experiência,
parece ser defendida por “pessoas influentes” uma pureza da linguagem, excluindo
tudo que não se parece com o que é produzido por eles. Tal postura é um total
retrocesso quando estamos num contexto contemporâneo de contaminação entre as
linguagens que pode proporcionar, inclusive, uma maior riqueza nas
manifestações artísticas.
Como afirmo no
Manifesto da Fome: “Não tenho uma raça ou etnia
definida, tenho a compreensão de que diferenças existem, e que as fomes não são
as mesmas. Enquanto artista me coloco na zona de fronteira, onde posso me
deslocar para uma linguagem ou para outra com total liberdade, me interessam as
possibilidades de miscigenação das diferenças, de extinção de uma pureza das
linguagens, do humano.”
Faz-se necessário
compreender que o movimento surge de um impulso, uma sensação seja o simples
movimento de coçar uma parte do corpo ou a realização de trinta e dois fouettés. A dança é de todos que queiram ou que precisem
dançar e é possível encontrar a dança nos movimentos de um bebê que começa a
compreender os impulsos necessários para mudar de posição, como esboço no
experimento de vídeo “Dança para Aprender a Ser de Novo”.
Proposto para a
avaliação da Disciplina de Tv e Vídeo, cursada no decorrer da graduação em
Teatro, engatinhando na edição e captação de imagens coloco bailarinos em seu
momento de ensaio que, ao atenderem às batidas na porta da sala, vão sendo
substituídos por uma criança encontrando as coordenações necessárias para
desenhar ou mesmo um bebê brincando no chão da sala. Tal inversão é proposta
como uma maneira descontraída de pensar essa dança “de toda a gente”, virtuosa,
estranha, misturada, popular e acadêmica, mas antes de tudo isso, Dança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário