Com o convite para apresentação na Virada Multicultural de Recife, tive a oportunidade de revisitar uma ideia de performance que surgiu no processo de criação da encenação 1o Manifesto. É uma ideia simples que consiste na leitura do “Manifesto da Fome” escrito pela performer Chrystine Silva aliada à distribuição de “santinhos” com imagens de performers tais como Marina Abramovic e Guillermo Gomez Peña. A performer se apresenta inicialmente vestida com uma roupa base e se direciona à um púlpito localizado no centro do espaço. Durante a leitura do manifesto a performer vai montando diversas imagens relacionadas ao trânsito de construção de diferentes identidades artísticas acoplando diversos objetos ao corpo. Para a realização desta performance o "Manifesto da Fome foi revisitado e algumas idéias foram acrescentadas. Aí está o resultado:
MANIFESTO DA FOME
Fome. A favor ou contra nossa vontade nós artistas aprendemos desde cedo a lidar com ela. Não me refiro aqui à fome provocada pela privação do alimento, mas sim àquela fome que nos faz continuar nossa trajetória, a busca pelo confronto de questões. O artista assume sua incompletude e imperfeição e aceita como profissão a arte de se jogar em abismos, de desejar os desacertos sem receber nada em troca. Algumas vezes nada mesmo.
Esse é o tipo de coisa que vez ou outra se ouve dizer naqueles raros momentos em que artistas são aclamados e lembrados por suas obras. Mas será realmente necessário morrer cultivando a fome esperando ser reconhecido por seus contemporâneos?
Nossa sociedade é cega ao que se produz artisticamente nos dias de hoje, não há incentivos, não há salários, o artista sobrevive unicamente de sua própria fome. A arte que é produzida hoje por artistas famosos tende a suprir as demandas consumistas imperialistas que clamam por produções que sejam rápidas e que agradem a massa. A arte do terceiro mundo latino perde a cada dia seu sentido primeiro de provocação a questionamentos, reflexões, transformações e a resistência.
Não podemos culpar a sociedade por reações que foram provocadas apenas por nossas ações. É preciso afirmar a importância da arte como ciência de desconstrução do humano que, nos dias de hoje, é caracterizado pela impessoalidade e fugacidade das ações de uma vida. Para tanto é necessária uma mudança de atitude por parte dos artistas para que esta provoque uma mudança no pensar da sociedade.
1. É preciso dedicar-se a ensinar sua arte.
2. Deve-se ir de encontro a pessoas que se utilizam da arte como mecanismo apenas para chamar a atenção para si. Depois de criada, a obra de arte pertence ao mundo e não mais ao artista.
3. Artistas não são pobres coitados, são apenas pessoas que, como qualquer outra, buscam ganhar dinheiro com sua profissão.
4. A arte não é um bem exclusivo de poucos.
5. Desconfie de pessoas que dizem ensinar arte sem que ao menos tenham experimentado a condição de artista.
6. A arte faz pensar e não emburrece, arte não é apenas entretenimento.
É contraditório que, no terceiro mundo caracterizado pela comum miséria e fome das minorias, os artistas tenham escolhido viver da fome. Mas nós acreditamos no humano e, com nossas ações, esperamos promover mudanças que aliviem os egoísmos causados pelas dinâmicas atuais de vida e de morte.
A arte que finge não fazer parte do mundo em que está inserida é uma tentativa mal sucedida de fazer com que o público esqueça a situação atual, virtual, contemporânea, do ambiente que nos cerca. Mal sucedida porque é uma ilusão que dura apenas por alguns instantes, pois quando termina o momento de beleza estética e poética, todos voltam ao deserto do real, à realidade que não é recheada de aplausos senão para espantar os mosquitos.
É importante pensar a arte enquanto mecanismo de resistência à imobilidade, esta que em alguns momentos nos parece mais confortável ou seguro diante das constantes violações pelas quais passamos no nosso dia-a-dia. Contrabandear o movimento, o pulso, a aceleração para a vida.
A arte não apenas se aproxima da vida ou do público, ela parte deles. O artista não é mais o ser iluminado, ele é um ser interpelado e pelado pelas mesmas preocupações financeiras, sociais e políticas que aqueles que o assistem, o testemunham. Ambos artista e público analfabetos de sua fome, alunos de seus estômagos vazios.
É hipocrisia dizer que conhecemos toda a miséria que há no mundo, a televisão nos faz o favor de ocultar as partes que lhe interessa ocultar. Cada olhar que se comunica se torna uma maneira de mutilar o acontecido. Pois não seria isso o acontecido para nós, uma falsificação, uma ficção, da televisão, do rádio, dos jornais, de nossos corpos? De qualquer forma, saber das coisas não é vivê-las. Estamos tão informados quanto estamos mortos no decorrer dos dias.
Ser parte do terceiro mundo hoje em dia talvez não pareça uma condição tão ruim apesar das pesadas conseqüências que temos que carregar culturalmente e que parecem quase impossíveis de serem desfeitas. Apesar da história mundial ser para nós um prato vazio, um calote inesgotável. O que há abaixo do terceiro mundo? Creio apenas que pior do que viver o terceiro mundo é tentar manipulá-lo. Melhor do quê ser índio invadido, morto de fome na calçada, às vezes as duas coisas, diz a faixa presidencial do terceiro mundo.
Minha anatomia política ou de qualquer outra ordem está relacionada à diversos fatores como o lugar em que nasci, a escola em que estudei, mas, ainda mais importante que isso, é definida pela sua relação com outras pessoas, e é nesse ponto que as questões se complicam. Isso por que há algumas pulsões inerentes do ser humano que são incompreensíveis, tais como: todo ser humano quer sentir que está no comando, seja direta ou indiretamente, estando para isso disposto a travar guerras frias ou quentes, para fazer prevalecer sua vontade, sua fome. Enquanto questões simples como a política em seus diversos sentidos ou domínios depender da interação entre os seres humanos não haverão muitas situações bem sucedidas. Há quase sempre grande fracasso em conciliar os desejos de famintos.
A arte como força de resistência, o artista sempre em estado de guerra, não contra algo ou alguém, mas a favor da resistência, da tomada de atitudes e da mobilidade diante das situações da vida contemporânea. A arte não se apresenta apenas enquanto objeto artístico para apreciação, nas situações extremas de fome e de combate, a arte está na capacidade de manter-se em luta tal como a fome está na capacidade de manter-se vivo.
Não tenho uma raça ou etnia definida, tenho a compreensão de que diferenças existem, e que as fomes não são as mesmas. Enquanto artista me coloco na zona de fronteira, onde posso me deslocar para uma linguagem ou para outra com total liberdade, me interessam as possibilidades de miscigenação das diferenças, de extinção de uma pureza das linguagens.
A grande riqueza está nas tentativas de compreensão de outras maneiras de comunicação, sejam de fala, sinais, sonoridades, e no fracasso de cada uma delas no esforço de dizer tudo, de ser compreendido inteiramente. É neste momento em que somos retirados de nossa zona de conforto, na qual somos compreendidos de qualquer maneira e, na nossa fala, passamos a nos preocupar com o que será compreendido pela parte receptora. Passamos a ser estrangeiros de nossas palavras.
Nessas palavras fica a dramaturgia da sobrevivência, da re-invenção de possibilidades de comunicação e de compreensão dos códigos estabelecidos. De outro nome para tantas Américas sob a mesma placa, tantas fomes sob a mesma miséria.
A fronteira do meu corpo é a pele que o cerca, as palavras que dele saem, os domínios que ele alcança. Mas gosto também da imagem de que minha pele é muito curta ao meu corpo, de que as palavras podem ser quebradas e a comunicação pode ser movimento, e que o domínio pode ser miscigenado e expandido pelos corpos.
Essa fronteira é muito sensível e pode ser tocada não apenas com o tato, mas também com palavras. Sinto-me invadida quando passo em algum lugar com muitos homens, ao saber dos estupros recorrentes nas ruas, terrenos baldios, nas casas, nas meninas vendidas em toda a costa do nordeste. Me sinto invadida quando ouço algo sem a mínima arte sobre ser artista, como quando a fronteira do meu corpo é tocada, empurrada, pisada por desconhecidos que não se dão nem ao trabalho de pedir desculpas depois. As relações humanas cotidianas desgastam meu corpo na medida em que não há respeito, em que a fome do outro não tem importância.
Se como dizia Brecht todo ser humano precisa da ajuda dos outros, ou como dizia Goethe é bom na miséria ter companheiros, compartilhem a fome, respeitem a fome alheia, passem a manteiga na hóstia, a arte na vida, a diferença na diferença, e não passem a arma no índio, o pênis nas crianças, a corda nas mulheres, as palavras nos mudos, o domínio na vida, o terceiro no mundo, o emergente no país.
Acreditamos no humano e, com nossas ações, esperamos promover mudanças que aliviem os egoísmos causados pelas dinâmicas atuais de vida e de morte.
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