Uma mini-pesquisa que fiz na disciplina Introdução à Educação Especial, impulsionada por uma necessidade pessoal e, ao mesmo tempo, coletiva de clarificação de questões relacionadas à Dança e a Síndrome de Down. Espero que seja proveitoso para o leitor enquanto possibilidade de questionamento e ações.
1.1 INTRODUÇÃO
Diante do projeto de pesquisa, intencionamos a realização de uma pesquisa relativamente abrangente sobre experiências no ensino de Dança para pessoas com Síndrome de Down relatadas no âmbito acadêmico. Porém o campo que se apresentou na prática demonstrou a escassez de material relacionado a este tema. Teses e dissertações que tratam do ensino na perspectiva inclusiva, independendo da deficiência e da área específica, são representados por números muito pequenos diante de outros campos de pesquisa.
No site Portal da Sociedade Inclusiva[1] da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, se encontra os resultados de uma pesquisa realizada nos principais bancos de teses do país, com os temas Educação Inclusiva e Inclusão Escolar. Um quadro mostra que, em média, nas principais universidades do país são defendidas cerca de 10 teses de doutorado por ano.
Diante da especificidade do campo de pesquisa aqui apresentado, Síndrome de Down e Dança, esta escassez se faz gritante, pois através de pesquisa realizada no banco de teses da CAPES não foi encontrada nenhuma tese relacionada ao tema aqui pesquisado. Nesse sentido realizamos pesquisas em ferramentas mais abrangentes como o próprio “Google Acadêmico”, que apresentou uma quantidade ainda pequena de artigos científicos e revistas especializadas.
O estudo apresentado a seguir se baseia na leitura e interpretação de 6 artigos científicos que relatam experiências de pesquisas realizadas através do contato entre com pessoas com Síndrome de Down e a Dança. Dentre estes artigos, três foram escritos por estudantes e professores de Educação Física, um foi escrito por estudantes e professora de Fisioterapia e dois foram escritos por professoras das áreas de Dança, Comunicação e Psicologia.
1.2 A SÍNDROME DE DOWN
Embora não haja uma comprovação definitiva, várias pesquisas apontam para a ocorrência do nascimento de crianças com Síndrome de Down em séculos ou até mesmo milênios anteriores. O registro antropológico mais antigo data do século VII e deriva de escavações de um crânio saxônico, alguns pesquisadores acreditam que a SD foi retratada em esculturas e pictografias na antiguidade, embora o exame cuidadoso dessas obras traga dúvidas sobre este fato.
Embora haja este tipo de especulação não foi encontrado nenhum tipo de publicação concernente à SD antes do século XIX, esse fato se deve desde a escassez de revistas médicas e até a ocorrência de muitas doenças como infecções e desnutrição que ofuscavam os problemas genéticos e de malformação. (PUESCHEL: 2002)
A SD é uma condição genética que ocorre devido a uma anormalidade cromossômica que pode se manifestar de três maneiras diferentes. A causa mais comum (95% dos casos) é a trissonomia 21 ou trissonomia simples, que se caracteriza pelo aparecimento de um cromossomo extra no par 21, disfunção esta que ocorre no momento da divisão celular.
Ainda não se conhece a causa exata da geração de uma criança com Down, porém há alguns fatores que podem interferir como a idade avançada da mãe, exposição a raios-X o uso de certas drogas ou problemas hormonais, porém não há nenhuma evidência de que estes fatores foram responsáveis pelo nascimento de uma criança com SD.
Dentre as características mais comuns entre as pessoas que têm SD, está a baixa estatura, o rosto com contorno achatado, os olhos oblíquos, cabelo esparso e fino, e boca pequena. Dentre estas características, podemos também citar diversas alterações físicas e fisiológicas que acarretam no atraso do desenvolvimento motor do indivíduo, bem como uma maior probabilidade de desenvolvimento de diversas doenças tais como leucemia e problemas posturais. (FURLAN & MOREIRA & RODRIGUES: 2008)
No que diz respeito ao desenvolvimento corporal das pessoas com SD, podemos dizer que estas passam pelos mesmos períodos sensórios motores do que qualquer criança, porém de maneira mais lenta, necessitando um maior acompanhamento e estimulações. Observa-se também a hipotonia muscular ou tônus muscular diminuído, ou seja, as pessoas com SD apresentam seus músculos mais flácidos e fracos do que o de uma pessoa que não tenha a síndrome. Outra complicação freqüente é a hiperflexibilidade que acaba por causar a instabilidade das articulações dos joelhos e tornozelos, ocasionando ainda problemas posturais (FARENCENA & SILVA & BERESFORD: 2010)
1.3 SÍNDROME DE DOWN E DANÇA
Diante das problemáticas apontadas acima com relação ao desenvolvimento motor da pessoa com SD, podemos perceber que estas pessoas tendem a ter complicações desde o aprendizado da linguagem falada ou escrita até a realização de tarefas cotidianas que exijam certo nível de coordenação motora. A dança, nesses casos, se apresenta como uma alternativa para estimular o desenvolvimento corporal da criança, pois:
“Verificamos que diversos autores apontam que a dança instiga a execução dos mais variados movimentos e ainda, o trabalho de repetição o que favorece a auto-correção e uma maior fixação da aprendizagem do movimento. […] Concluímos que com a dança pode-se focar o trabalho em grupo, a expressão corporal e a exploração dos mais variados movimentos, além de contar com elementos como a música e o ritmo, que favorecem a ludicidade da intervenção e ao mesmo tempo, agucem o seu domínio psicomotor.” (FURLAN & MOREIRA & RODRIGUES: 2008, p. 235)
Diante das experiências relatadas nos artigos estudados podemos perceber que a maioria dos pesquisadores utilizou a Dança como meio facilitador do desenvolvimento motor das pessoas com SD dentre estes estão os que relatam pesquisas desenvolvidas por alunos e professores das áreas de Educação Física e Fisioterapia.
Nestes casos foram desenvolvidos trabalhos com grupos de adolescentes e crianças com SD na perspectiva de avaliar os resultados obtidos com a prática, bem como de compará-lo com o de crianças e adolescentes que não praticam Dança. Dentre os artigos estudados podemos refletir sobre três aspectos principais sobre os quais estes nortearam suas pesquisas: o esquema corporal, a marcha e a coordenação motora.
Esquema corporal consiste numa espécie de diagrama construído no cérebro desde o nascimento responsável pela organização e orientação de todos os movimentos de cada parte do corpo do indivíduo. O esquema corporal passa por um processo de evolução durante toda a vida e, conforme ocorrem modificações no esquema corporal surgem níveis mais elevados de movimento e de controle motor. O bom desenvolvimento do mesmo conduz a uma evolução satisfatória das demais áreas da psicomotricidade. Nesse sentido:
“A estruturação do esquema corporal na evolução psicomotora ocorre em três etapas: a fase do corpo vivido, em que a criança identifica e diferencia seu corpo reconhecendo-se como objeto através de experiências motoras vividas; a fase do corpo percebido ou descoberto, considerando as experiências da fase anterior, a criança sofrerá uma evolução no plano na percepção e a fase do corpo representado, que se caracteriza pela estruturação do esquema corporal, ou seja, a criança já é capaz de representar mentalmente seu corpo e de controlar voluntariamente gestos desnecessários, dispondo de uma verdadeira imagem em representação mental de seu corpo.” (FURLAN & MOREIRA & RODRIGUES: 2008, p. 237)
A criança com SD tem maior dificuldade de nomear seu corpo com suas diferentes partes embora consigam percebê-lo. O princípio básico para a educação motora é a conscientização corporal, e esta se dá através do contato com outros indivíduos e outros meios. Nesse contexto a prática da dança pode resultar numa melhoria da consciência corporal, na construção da auto-imagem e, conseqüentemente, da auto-estima, pois através da ludicidade e do aspecto rítmico a Dança oferece uma maior possibilidade de execução de movimentos livres possibilitando à criança o conhecimento de seu próprio corpo.
No que diz respeito à marcha, foi realizado um estudo comparativo entre a marcha de um adolescente com SD dançarino e um sedentário. A marcha é dividida em dois períodos: o apoio, que consiste em sessenta por cento (60%) do movimento da marcha, e o balanço, que consiste em quarenta por centro (40%). Outras atividades funcionais são feitas a cada passada, a transferência de peso, o apoio simples e o avanço do membro.
A marcha da pessoa com SD se apresenta mais lenta, mais curta e com uma extensão pélvica maior devido aos pés achatados contra o chão e a posição dos joelhos levemente voltados para fora e para trás. A prática da Dança, observada sobre o viés da marcha proporcionou a suavização das características físicas do adolescente com SD dançarino que causam sua ralentação e encurtamento, sendo estas características mais perceptíveis no adolescente sedentário. (CANHOTO, D. et al: ----)
Como citado anteriormente, o atraso no desenvolvimento do aspecto motor da criança com SD pode ser causado por alterações constantes e significativas no cerebelo, esta parte do cérebro é responsável pela motricidade da criança e está diretamente relacionado à hipotonia. Outras complicações nas demais regiões do cérebro, tais como os sistemas neuronais do tronco cerebral, são percebidas em crianças com SD interferindo também no desenvolvimento motor.
De acordo com os artigos estudados a Dança atuou neste aspecto suavizando as dificuldades na realização de movimentos coordenados e equilíbrio através de exercícios de controle corporal. Os autores concluem que a Dança pode ser veículo de estimulação da criança com SD desde sua infância respeitando-se os limites que esta pode apresentar. Nesse sentido é válido ressaltar a importância da estimulação à criança, pois se ela apresentar déficits de motricidade na primeira infância, estes se refletirão na sua vida adulta. (MAIA, A. V. & BOFF, S. R.: 2008)
Com relação aos resultados que as pesquisas aqui citadas apresentaram podemos dizer que:
“Os adolescentes com SD evoluíram quanto ao domínio de seus corpos, desenvolvendo e aprimorando suas possibilidades de movimentação, descobrindo novos espaços e novas formas de superação de suas limitações, criando condições para enfrentar novos desafios relacionados não só com os aspectos motores, mas também com os sociais, afetivos, e cognitivos e, assim, agir, reagir e interagir com seu grupo familiar e de colegas ou amigos.” (FARENCENA & SILVA & BERESFORD: 2010, p. 8)
Em todas as pesquisas aqui relatadas a Dança foi utilizada apenas como facilitador do ponto de vista do movimento e da auto-correção como maneira de evitar movimentações involuntárias e indesejadas. Sobre esta questão Eleonora Campos da Motta Santos e Denise Maria Barreto Coutinho (2008) refletem sobre a percepção da relação entre Dança, corpo e pessoa com deficiência apresentada por estudos dos últimos dez anos e que, segundo nossa percepção, é também perceptível nos estudos citados anteriormente.
Para as autoras há a predominância de uma concepção de deficiência relacionada à limitação ou incapacidade ligada ao reconhecimento de que pessoas com deficiência possuem potencialidade a serem desenvolvidas como maneira de romper barreiras. Esse tipo de expressão localizada nos textos estudados pelas autoras pode ser aqui encontrado nas citações anteriores e apresentam uma visão cartesiana onde o corpo com deficiência é considerado não normal e portador de limitações intransponíveis.
É importante ressaltar que os artigos aqui citados mencionam esta linguagem artística, com a exceção de Santos & Coutinho (2008), como uma atividade ligada à prática esportiva no campo da Educação Física mesmo havendo o reconhecimento da dimensão artística desta. É preciso compreender a Dança não apenas da perspectiva da apreensão e repetição de movimentos, mas em sua perspectiva de investigação artística, possibilitando que o aluno reconheça seu corpo para além das dificuldades e defeitos a serem corrigidos,
“Um corpo capaz de experimentar sua configuração de um modo criativo e potencializador no estabelecimento de outras relações com o mundo. [...] Sem focalizar apenas resultados reabilitacionais e socioterápicos, propõem uma educação em arte com vistas ao desenvolvimento do sujeito autônomo e com sentido de pertencimento social.” (SANTOS & COUTINHO: 2008, p. 113)
Diante das questões levantadas compreendemos que a Dança, enquanto linguagem artística tem como função primeira a de expressão e comunicação, portando o professor deve atuar como um mediador da relação entre os alunos e o ambiente, administrando as questões que serão colocadas em seu caminho para o desenvolvimento de uma linguagem pessoal que transpõe as palavras.
Devemos levar em conta as questões políticas e pessoais que podem ser levantadas e discutidas através desta linguagem, pois “no universo da arte contemporânea há espaço para diversas intenções artísticas e o artista não precisa fazer resistência, 'levantar bandeiras' ou transmitir mensagens – mas pode fazê-lo.” (SIQUEIRA & ALVES: 2008)
Durante as pesquisas pudemos encontrar um caso famoso de uma jovem que, desde a infância, pratica o Ballet Clássico. Aline Fávaro Tomaz é a única bailarina com Síndrome de Down a dançar com sapatilhas de ponta no Brasil, tendo representado o país em diversas apresentações internacionais. Seus pais escreveram o livro Eficiência na Deficiência (SILVA: 2005), no qual descrevem seu cotidiano e o contato com a Dança nos primeiros anos de vida.
Ao assistirmos uma das diversas entrevistas e reportagens a seu respeito disponíveis em seu blog[2], uma nos chama mais a atenção. Organizada pelo programa Hoje em Dia da Rede Record de Televisão, foi exibida como parte do quadro “Superação”, mostrando um pouco de seu cotidiano nas salas e apresentações de Ballet Clássico e uma entrevista com sua professora, Márcia pereira.
Logo no início da reportagem, durante a apresentação de imagens de Aline dançando nos deparamos com a seguinte frase dita pela jornalista: “A bailarina exemplar tem o corpo lindo, cintura fininha, postura e leveza ao equilibrar todo o peso do corpo para conseguir o passo perfeito.” Nessa frase e em outras distribuídas pela reportagem podemos perceber a real imagem que a sociedade tem construído com relação à pessoa com deficiência e ao Ballet Clássico.
Ao questionarmos as pessoas sobre a primeira imagem que lhes vem à cabeça quando falamos em Dança, a imagem predominante é a de uma bailarina clássica com vestidos esvoaçantes e sapatilhas da ponta nos pés. Essa associação quase que imediata se deve à hegemonia do Ballet Clássico como praticamente única manifestação de dança do século XVI até 1912 com o surgimento da primeira bailarina à experimentar a dança dos pés descalços como, mais tarde, ficou conhecida a Dança Moderna.
O Ballet Clássico teve seu início nas danças de corte, sendo dançadas apenas por príncipes e reis. Em meados do século XVIII com os primeiros Mestres de Ballet, esse tipo de dança foi se tornando mais popular permitindo-se que o dançassem também pessoas que não pertenciam à realeza. O grande objetivo do Ballet Clássico é, até os dias de hoje, a perfeição dos movimentos, dentro dessa perspectiva o corpo dos bailarinos deve se encaixar em determinado padrão, e um bom bailarino deve conseguir realizar determinadas seqüências de movimentos.
Nesse sentido podemos identificar no exemplo citado ainda a hegemonia da percepção da pessoa com deficiência enquanto possuidora de limitações intransponíveis que, ligadas a concepção da prática do Ballet Clássico ou mesmo de outros tipos de dança com fins de educação do movimento, revelam a intenção da sociedade de “encaixar” todos os corpos num só modelo de perfeição do ponto de vista estético e de movimento.
1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Libertar as pessoas é o objetivo da arte, portanto a arte para mim é a ciência da liberdade.”
Joseph Beuys
Como dito anteriormente, mais da metade dos artigos lidos têm como autores profissionais formados nas áreas de Educação Física e Fisioterapia, demonstrando, portanto, uma concepção de Dança voltada para a educação e repetição do movimento. A partir desse fato podemos concluir que em parte dos artigos citados é perceptível uma visão clássica da Dança que estava voltada para a perfeição do corpo e do movimento.
Por estar ligado às cortes, tratar de temas etéreos geralmente baseados em lendas e contos, seus praticantes serem pessoas que demonstram uma postura diferente das demais, o Ballet atrai praticantes e é referência em Dança até os dias de hoje. Porém, desde a Dança Moderna bailarinos vêm procurando tratar de assuntos concernentes ao homem e seu contexto, uma maneira de expressão dos sentimentos humanos através da Dança. Não se busca mais a perfeição, pois esta não é uma qualidade do ser humano.
No que se conhece por Dança Contemporânea, há uma diluição completa da concepção de um corpo perfeito para a Dança, e de uma técnica específica à qual este corpo deve seguir. Não há mecanismos definidos, nem um tipo físico específico, o bailarino contemporâneo tem mais autonomia, pensar a dança contemporânea “é pensar em movimentos de corpos-idéias e não corpos ideais” (SETENTA: 2008, p. 44).
O bailarino contemporâneo busca conhecer seu próprio corpo e utilizar suas potencialidades de movimento como possibilidade de criação. Os assuntos de que trata a Dança também são outros, hoje problemáticas políticas e sociais, sentimentos universais ou mesmo histórias cotidianas são possíveis temas a serem trabalhados.
Nesse sentido, por que não utilizar a Dança como meio de reflexão sobre a própria condição da diferença inerente aos corpos de todas as pessoas e ao preconceito? É necessário explicitar que pessoas com deficiência que dançam não são indivíduos que representam um caso isolado de sucesso, mas pessoas que simplesmente utilizam seu direito de dançar e se expressar.
Não criticamos aqui as funções da arte enquanto terapia, mas sim enquanto educação do movimento. A dança pode atuar na melhoria de aspectos como a hipotonia, a hiperflexibilidade, e etc., porém não devemos esquecer sua função artística de estimular a movimentação livre e a reflexão sobre problemáticas inerentes à vida dos indivíduos, tais como a convivência em grupo, o respeito pela expressão do outro e mesmo a condição do corpo com deficiência diante da sociedade como um todo.
Creio que seria possível, diante das experiências relatadas nos demais artigos, orientar um processo pedagógico numa perspectiva processual de (re)conhecimento do indivíduo e do meio em que este vive, tendo as diferenças corporais e de idéias entre todas as pessoas como ponto de partida para a construção de uma convivência mais proveitosa entre os indivíduos e entre estes e seu meio.
2. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] http://www.sociedadeinclusiva.pucminas.br/teses.html (acessado em 02/10/2010)
[2] http://www.bailarinaespecial.com.br/default.asp (acessado em 25/09/2010)
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