Dentre as muitas coisas que estão acontecendo neste fim de ano, uma das mais importantes é minha participação no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN. Como não poderia ser diferente, meu projeto de mestrado gira em torno da questão da nomenclatura "Dança Contemporânea" e suas implicações no fazer em dança. Como todos os meus esforços estão voltados para este processo seletivo no qual tive sucesso nas duas primeiras fases, compartilho aqui algumas questões presentes no meu projeto que, com certeza, são questões que foram construídas em um processo de vida em contato com a arte, seja ela a dança, o teatro ou a arte da performance.
Apreciem, leiam, critiquem:
DANÇA CONTEMPORÂNEA: PERFORMATIVIDADE E PROCESSOS CRIATIVOS
Partindo do preceito de que a
performance se caracteriza pela provocante presença do ser humano buscando
tocar o sensível, esta estética integrativa do vivente preza pela relação
frente a frente do ser humano, perpetuando esse choque como algo essencial e
necessário para a concretização total do acontecimento performático. (SCHULZ &
HATMAN: 2009, p. 1)
A
pesquisa ora proposta será de cunho teórico-prático, resultando simultaneamente
numa apresentação artística que partirá dos resultados de experimentações
práticas, bem como numa dissertação na qual serão tratadas questões
relacionadas ao fazer em Dança Contemporânea e o conceito de performatividade
propondo-se assim noções diferenciadas para o processo criativo em dança, que
não estão atadas à apreensão e execução de movimentos orientados pela figura do
coreógrafo.
Nesse sentido podemos
refletir que desde os pioneiros da Dança Moderna, estabeleceu-se um novo
paradigma no qual a dança não precisa de narrativa ou mesmo de trilha sonora, o
corpo em movimento estabelece sua própria dramaturgia, sua musicalidade, um
tipo de vocabulário (re)criado pelo corpo e para o corpo. O bailarino, desde a
Dança Moderna vem buscando em sua dança o retorno ao espaço da não-atuação,
termo utilizado por Hans-Ties Lehmann (2007) no que diz respeito ao performer,
que se refere ao fato de este nos mostrar seu próprio corpo e não a ficção de
outro e, assim, suas próprias idiossincrasias.
Como
exemplo podemos citar uma das precursoras da Dança Moderna, Isadora Duncan que,
passado o auge dos espetáculos clássicos, com sua dança dos pés descalços buscou
maior liberdade de expressão em formas mais vivas de movimento. A dança de
Duncan deu início à busca por uma expressão pessoal através da arte, continuada
pelos bailarinos até os dias de hoje. A dança tornou-se, por si, um discurso do
corpo que, como afirma Jorge Glusberg (2003) a respeito da arte da performance,
configura o momento em que “os artistas mostram seu próprio corpo numa atitude
de reencontro consigo mesmos” (GLUSBERG: 2003, p. 53).
Podemos
afirmar, utilizando a premissa colocada por Paul Zumthor, que a performance tem
como fator primordial para seu acontecimento a presença de um corpo, retomando o que o autor chama de energia poética[1]
(ZUMTHOR: 2000). A performance não se liga apenas ao corpo, mas dele ao
espaço, e essa ligação se dá através da energia que emana dos corpos e que se
instaura pelo espaço, tornando-o outro e assim identificado pelo receptor.
Refletindo sobre tal compreensão, podemos atentar para
sua manifestação nos diferentes momentos da história dança. Na dança primitiva,
em sua maioria, as danças aconteciam em círculo, como maneira de facilitar a
troca energética entre o bailarino e os presentes, pois a dança era tida como
força mágica, como a única maneira de comunicar algo aos deuses. Já a partir da
Idade da Pedra afirmou-se o caráter comunicacional da dança, não apenas aos deuses,
mas aos outros seres humanos que a vivenciavam em busca de outro estado
energético.
No cerne da dança clássica está a expressão poética das
relações políticas e pessoais, tocando-se também no imaginário daquele que
presencia sua apresentação através de temas etéreos como mulheres que,
enfeitiçadas, tornam-se cisnes, como no clássico de repertório “O Lago dos
Cisnes”, ou romances de jovens camponesas com nobres príncipes disfarçados de
plebeus como no ballet de repertório “Gisele”.
Nessa
manifestação artística executada inicialmente apenas pela nobreza, os
bailarinos buscavam mostrar o mais bonito de si mesmo para os nobres que os iam
assistir (SOUZA: 2009). A ida a um espetáculo de ballet era, na época, um
grande acontecimento social no qual seus mais célebres membros iam para encontrar-se. Assim, o ato de “encontrar-se”,
consigo ou com o outro, está presente enquanto base da experiência da dança e
primeiro índice performativo que perpassa toda sua trajetória.
A Dança Contemporânea, por sua vez, apresenta corpos
deformados por próteses ou instrumentos como pernas de pau, podendo até não
possuir um corpo presente, mas ainda assim algo que se possa identificar como
corpo em movimento, apresentando cada vez maior grau de interatividade entre
eles e o público. Nesse sentido podemos citar como exemplo o grupo catarinense
Cena 11 Cia de Dança que traz para a cena o lado imperfeito do ser humano unido
a uma linguagem própria baseada na busca de uma dança em função do corpo que se
utiliza de quedas e manobras geralmente não executadas em espetáculos de dança.
Essa
abordagem do ser humano cotidiano pela dança se torna cada vez mais comum na
medida em que os artistas passam a tratar de questões pessoais através dos
espetáculos ou coreografias. Nesse sentido podemos citar o conceito
de self as context, desenvolvido pelo teórico Richard Schechner (2006)
que, enquanto possibilidade de processo criativo nas artes cênicas, pode ser
entendido como um procedimento no qual o artista tem a liberdade de partir de
si enquanto contexto para a criação artística.
Ainda na Dança
Contemporânea podemos perceber uma pluralidade nos fazeres que nos levam para
as mais diferentes formas de encontro entre bailarino e público. Dentre estes
fazeres, encontramos em grande parte experiências que repetem modelos
anteriores de criação, ao serem orientadas pela figura de um coreógrafo que
estabelece e repassa as sequências de movimentos aos bailarinos que, por sua
vez, devem reproduzi-las com perfeição técnica, como acontece no caso da companhia
brasileira Déborah Colker.
Assim como encontramos
companhias ou bailarinos que repetem modelos clássicos, também encontramos
aqueles que investigam novos caminhos de criação aproximando-se de questões
contemporâneas e assumindo diálogos com outras linguagens como a bailarina Vera
Sala que desenvolve solos em que trabalha com elementos da Arte da Instalação,
e assume a incompletude do movimento pensando os estados de seu próprio corpo
no momento presente da ação.
É nesse cenário diverso da contemporaneidade que
pretendemos desenvolver a pesquisa proposta levando em conta um fazer que tenha
como suas diretrizes o conceito de performatividade e o respeito ao trânsito de
ideias pelo qual passa o bailarino considerando-o mídia de seu próprio corpo (GREINER:2005) e agente de seu movimento.
[1]Para exemplificar sua concepção
de performance, Zumthor coloca uma situação vivenciada por ele em sua infância,
quando no caminho para a escola escutava a música dos cantores de rua, ao redor
dos quais iam se acumulando várias pessoas que retomavam a cantoria em coro.
Zumthor cita também a situação que circundava a cantoria, os camelôs que
vendiam as letras das músicas, o fim de tarde, riso das moças que saíam do
trabalho, a cor do céu de inverno e, segundo ele, tudo isso fazia parte da
canção, “era a canção”. Para ele esta
canção possuía uma energia de emanava
dos corpos presentes, da cantoria, do contexto cultural e situacional, a
energia poética.
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